Nós, os bichos.
Lembra-se Manoel Bandeira?
Em 1947, ele escreveu o seguinte:

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”

Ontem eu vi um bicho.
Ele estava caído em uma calçada de Pernambuco. Eu estava a pé.
Parecia dormir. Ou estar morto.
Para os outros bichos que passavam, não importava: eles se desviavam do caminho e evitavam olhar para a cena.
Eu passei. Diminui o passo. Olhei para trás.
Pensei: “está vivo?”
Liguei para o 192: expliquei a situação e pedi orientações.
A atendente, educadamente, anotou meus dados, os dados do local da “ocorrência” e disse que ia me passar para um médico.
O “médico” atendeu. Eu me identifiquei, como um bicho educado e adestrado que sou, e expliquei a situação.
“O que eu faço?”, disse eu.
Ele me orientou a “cutucar” o bicho. Cutuquei com o pé.
O bicho abriu os olhos, tinha uns quinze anos, talvez menos. Eu perguntei: “O que aconteceu?”
O bicho apalpou a própria barriga e disse só uma palavra: “fome”.
Eu disse ao “médico” – ao telefone – “ele está acordado agora. Tem uma aparência esquelética. Diz estar com fome”.
O “Médico” disse: “então não podemos fazer nada, só atendemos urgências médicas. O senhor precisa ligar para a assistência social.”
Eu perguntei se o “médico” sabia o telefone da assistência social: ele disse que não.
Pensei, então, no tal juramento de Hipócrates, onde tem uma parte que os formandos em medicina juram “aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.”
Fome extrema não é uma doença?
“Não posso fazer nada.”
Eu olhei para o bicho e disse: “fique aqui, eu volto.”
Ele sorriu: os dentes da frente quebrados.
Comprei uma coca-cola, um cachorro quente e um pedaço de bolo.
Voltei.
Pedi calma ao bicho: eu disse que ele estava muito fraco, que tomasse primeiro – e devagar a coca-cola – para recuperar a energia. Ele obedeceu.
Então eu dei o cachorro quente e disse: coma devagar, pois você pode passar mal. Ele aquiesceu.
Depois que ele comeu o cachorro quente, perguntei-lhe o nome: “Erick”.
-Você tem casa Erick? – perguntei.
Ele disse que morava com a avó em algum bairro que eu, juro, não entendi o nome.
Ajoelhado ao seu lado, pedi que ele olhasse nos meus olhos. E obedeceu.
-Vá para casa. Vá para junto de sua avó. Não fique mais aqui, não quero te ver de novo caído na rua. Você vai para casa? Você me promete? – disse eu.
O bicho prometeu que sim.
Dei a ele 8 reais e pedi novamente: vá para casa, por favor.
Ele sorriu, sem os dentes da frente e disse que sim.
Levantei-me e segui em frente.

Confesso que chorei, como sempre, por não poder fazer mais neste momento da minha vida.
E rezei para que ele voltasse para casa.
Se ele fosse um bicho com pedigree, como um raro poodle ou um lindo Yorkshire Terrier, tenho certeza que eu não o teria encontrado caído e dormindo no chão, pois alguém já o teria pegado no colo e levado para casa dizendo “tadinho, quem tem coragem de fazer isso com um bichinho tão fofo?”
Mas ele não era um bicho com pedigree: ele era apenas um bicho, “um bicho, meu Deus, que era um homem.”, como disse Bandeira há mais de cinquenta anos.
E que tipo de bicho nós somos ou nos tornamos, quando a visão de um de nós caído nos gera repulsa e fuga.
Quando foi que abandonamos a nós mesmos? Por que nós fizemos isso?
Quando foi que a maioria de nós se tornou um bicho tão insensível que não consegue se enxergar no outro, naquele que respira, ama e sofre como qualquer um de nós?
Alguém já me disse que eu “queria salvar o mundo”.
Será que SER humano é tentar salvar o mundo?
E quando você encontrar outros “Ericks” por aí, tente se lembrar que, no mínimo, ele é um bicho-humano.
E, talvez mais importante ainda, tente se lembrar de que você também é um bicho-humano.
Que sangra, que sofre, que tem fome.
(Que talvez sonhe, que talvez ame, que talvez tenha esperança.)
E tome a decisão que achar melhor.

Tom Prates, 10/12/2020.

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