Escravidão moderna

Ao estudar história, sempre me perguntei : “por que os escravos se mantinham escravos se eram muito mais numerosos que os seus “donos”?
Acreditei, em princípio, que devia se tratar do medo. O medo imposto pela violência, pelo porrete, pela posse de equipamentos que ampliam o poder de opressão. E era verdade, a manutenção de um número enorme de pessoas sob o domínio absoluto de um pequeno grupo de dava por meio da violência.
No Contrato Social, livro I, Rosseau cita que “Aristóteles dissera que os homens em absoluto não são naturalmente iguais, mas nascem uns destinados à escravidão e outros à dominação”.
Confesso que não sabia que Aristóteles assim o pensava, obrigado Jean Jacques.
E Rosseau prossegue: “Aristóteles tinha razão, mas tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido na escravidão, nasce para ela: nada mais certo. Os escravos tudo perdem sob os seus grilhões, até o desejo de escapar deles; amam o cativeiro como os companheiros de Ulisses amavam o seu embrutecimento. Se há, pois, escravos pela natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A Força fez os primeiros Escravos, a sua covardia os perpetuou”.
Triste fato, acredito eu, mais um escravo.
Universalmente a escravidão oficial acabou: sabem-se de casos espalhados pelo mundo, tráfico de pessoas, escravos de guerras, etc, mas oficialmente a instituição escravidão não é admitia no “mundo civilizado” tal como era até o século XIX.
Conforme reza o artigo III da Declaração dos Direitos Humanos, “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
Porém, já paramos para pensar em como se procedeu essa transição? De que maneira a escravidão passou de um hábito natural e justificado da sociedade civilizada para uma prática horrível e inumana?
De maneira macro, meus amigos, universalmente, houve um movimento histórico – ao meu ver lento – que propiciou essa transição. Aprendi no colégio que, no Brasil – por exemplo – o interesse da Inglaterra em acabar com a escravidão nos trópicos se devia mais ao crescimento de um mercado consumidor de seus produtos industrializados do que ao interesse de ver um mundo mais justo. Há controvérsias: Sempre haverá.
No Brasil, a escravidão acabou através de uma lei. Houve vários movimentos e influência política para tanto – também – mas o encerramento da questão foi uma lei.
Um de meus professores de colégio, Hipólito, dizia que o processo no haiti fora diferente: “antes da revolução no Haiti havia 90% de negros, 5% de mulatos e 5% de brancos. Após a revolução, ficaram 1% de mulatos e 99% de negros…”. Pelo visto lá, se verdade, houve realmente uma ruptura abrupta.
Nos Estados Unidos tivemos a Guerra da Secessão, onde o movimento de libertação dos escravo se misturou as outras questões políticas. Foi um período de muita violência.
E, claro, nestes casos cito apenas a escravidão da raça negra. Antes tivemos a prática da escravidão na Grécia e na Roma antiga, onde para ser escravo o fator da cor da pele era insignificante.
Mas, voltando ao pronto de transição, vimos que em locais determinados – como no exemplo do Haiti – reviravoltas violentas provocadas pela massa sufocada fizeram uma revolução libertadora. Percebemos que em outras partes do planeta – em princípio na maioria do planeta – essa transição ocorreu de maneira menos abrupta, onde citei o exemplo do Brasil.
Assim, o escravo que trabalhava sob a ameaça da vara, por casa, comida, vestuário e proteção passou a ser livre.
Livre, ele passou a trabalhar por uma renda. Esta renda lhe “permitia” pagar por casa, comida, vestuário. A proteção seria fornecida pelo Estado de Direito. Se ele não obtivesse a renda, lhe seria reservada a vida nas ruas, sobrevivendo através da mendicância.
Oficialmente e atualmente a escravidão – como já foi dito aqui – não é mais um instituto aceito. Hoje somos todos, no mundo dito civilizado, pessoas livres.
Somo pessoas livres que trabalhamos por um salário. Esse salário, no entanto, para a maioria esmagadora das pessoas é insuficiente para lhes garantir uma casa digna, comida suficiente para seu sustento e vestuário simples. Sempre lhes falta. Sempre estão devendo.
Eu pergunto: qual a diferença dessa massa infinita de pessoas para um escravo? O patrão não detém o poder de mando quase absoluto, alguém poder-me-ia responder. Mas qual a liberdade de escolha entre sair de um emprego com um patrão opressor e ficar à mercê do mercado de trabalho onde desempregados vagueiam por anos?
Realmente existe essa escolha?
Quantas pessoas você conhece, amigo leitor, que se mantém no mesmo trabalho há anos simplesmente por medo de não encontrar outro trabalho? Isso é não ter escolha.
Nós temos, hoje, o dito empreendedorismo, a livre-iniciativa, a qual inclusive está na Constituição do Brasil como um dos fundamentos de nossa República.
A partir da dela temos milhares de pessoas que se dedicam a terem pequenos e micro negócios. Segundo o Sebrae, 99% das empresas do Brasil são micro e pequenas empresas (MPE). As MPEs respondem por 52% dos empregos com carteira assinada no setor privado (16,1 milhões).
Interessante saber que a grande maioria dessas empresas pequenas não conseguem sobreviver à custas de suas próprias economias por mais de dois meses. Não existe para elas o que em contabilidade é chamada “provisão” (para prejuízos, crises, eventos desfavoráveis, devedores duvidosos, etc.). Essas empresas trabalham hoje, recebem amanhã e imediatamente pagam seus funcionários. Os “empresários” tiram suas despesas do mês – usualmente não suficientes – e “bola para frente”, sempre esperando um dia melhor, sempre esperando o momento da “virada”.
Quantas donos de pequenas empresas, amigo leitor, você conhece que vivem essa realidade do dia a dia? De “vender o almoço para pagar a janta?”
Se essas empresas param, elas quebram. Se ocorre qualquer evento diferente, elas quebram. Se elas quebram, seus funcionários…quebram.
Ora, eu pergunto: a partir do momento em que uma pessoa é obrigada a trabalhar dentro de um estreito limite, por casa, comida e vestuário, caso contrário ela “quebra”, ela não seria um escravo?
Pois entendemos o homem livre como o que? Alguém que pode circular “livremente” – porque há fronteiras – mas que não pode sequer ficar três meses sem trabalhar que vai ficar sem comida, sem teto, sem higiene, sem respeito, sem humanidade?
Sim, por que a diferença entre um trabalhador que mora em uma casa simples alugada e um morador de rua, são três meses sem salário e uma ação de despejo.
E depois de dois meses morando nas ruas, meus amigos, perde-se a humanidade e o respeito. Os que duvidam de mim, entrevistem quem vive nas ruas.
Trabalhamos – operários, pequenos empresários, funcionários públicos de baixo escalão, entre outros – por teto, comida e roupa, mensalmente.
A diferença entre nós e os antigos modelos de escravos é a doutrinação diária que recebemos desde o nosso nascimento, a doutrinação que fala que somos livres mas nos impõe condições de vida limítrofes: não há segurança pública, pois não há orçamento para tanto. Não há saúde pública, pois não há verbas para tanto. Não há lazer público, porque não há planejamento urbano. Não há esgotos e fornecimento de água potável para todos, porque a “população cresceu muito rápido” e foi “impossível coordenar o crescimento urbano”.
A doutrinação diária nos faz aceitar tudo isso com normalidade. Uma cadeia projetada para 1000 presos ser ocupada por 3000 passou a ser um fato natural para nós. Uma consulta em hospital público ser marcada para seis meses depois é outro fato natural para nós: através da doutrinação, aceitamos o inaceitável.
A semelhança entre nós, escravos modernos e os antigos escravos é que vivemos sob o domínio do medo. Antes, era o medo da violência física. Hoje, o medo de viver nas ruas, o medo da fome, o medo de não fazer parte de um sistema que nos drena, dia a dia, nossa própria vida.
Somos escravos, até que alguém me prove o contrário.

Tom Prates
Setembro de 2020 (revisado em janeiro de 2024).