Escravidão moderna

Ao estudar história, sempre me perguntei : “por que os escravos se mantinham escravos se eram muito mais numerosos que os seus “donos”?
Acreditei, em princípio, que devia se tratar do medo. O medo imposto pela violência, pelo porrete, pela posse de equipamentos que ampliam o poder de opressão. E era verdade, a manutenção de um número enorme de pessoas sob o domínio absoluto de um pequeno grupo de dava por meio da violência.
No Contrato Social, livro I, Rosseau cita que “Aristóteles dissera que os homens em absoluto não são naturalmente iguais, mas nascem uns destinados à escravidão e outros à dominação”.
Confesso que não sabia que Aristóteles assim o pensava, obrigado Jean Jacques.
E Rosseau prossegue: “Aristóteles tinha razão, mas tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido na escravidão, nasce para ela: nada mais certo. Os escravos tudo perdem sob os seus grilhões, até o desejo de escapar deles; amam o cativeiro como os companheiros de Ulisses amavam o seu embrutecimento. Se há, pois, escravos pela natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A Força fez os primeiros Escravos, a sua covardia os perpetuou”.
Triste fato, acredito eu, mais um escravo.
Universalmente a escravidão oficial acabou: sabem-se de casos espalhados pelo mundo, tráfico de pessoas, escravos de guerras, etc, mas oficialmente a instituição escravidão não é admitia no “mundo civilizado” tal como era até o século XIX.
Conforme reza o artigo III da Declaração dos Direitos Humanos, “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
Porém, já paramos para pensar em como se procedeu essa transição? De que maneira a escravidão passou de um hábito natural e justificado da sociedade civilizada para uma prática horrível e inumana?
De maneira macro, meus amigos, universalmente, houve um movimento histórico – ao meu ver lento – que propiciou essa transição. Aprendi no colégio que, no Brasil – por exemplo – o interesse da Inglaterra em acabar com a escravidão nos trópicos se devia mais ao crescimento de um mercado consumidor de seus produtos industrializados do que ao interesse de ver um mundo mais justo. Há controvérsias: Sempre haverá.
No Brasil, a escravidão acabou através de uma lei. Houve vários movimentos e influência política para tanto – também – mas o encerramento da questão foi uma lei.
Um de meus professores de colégio, Hipólito, dizia que o processo no haiti fora diferente: “antes da revolução no Haiti havia 90% de negros, 5% de mulatos e 5% de brancos. Após a revolução, ficaram 1% de mulatos e 99% de negros…”. Pelo visto lá, se verdade, houve realmente uma ruptura abrupta.
Nos Estados Unidos tivemos a Guerra da Secessão, onde o movimento de libertação dos escravo se misturou as outras questões políticas. Foi um período de muita violência.
E, claro, nestes casos cito apenas a escravidão da raça negra. Antes tivemos a prática da escravidão na Grécia e na Roma antiga, onde para ser escravo o fator da cor da pele era insignificante.
Mas, voltando ao pronto de transição, vimos que em locais determinados – como no exemplo do Haiti – reviravoltas violentas provocadas pela massa sufocada fizeram uma revolução libertadora. Percebemos que em outras partes do planeta – em princípio na maioria do planeta – essa transição ocorreu de maneira menos abrupta, onde citei o exemplo do Brasil.
Assim, o escravo que trabalhava sob a ameaça da vara, por casa, comida, vestuário e proteção passou a ser livre.
Livre, ele passou a trabalhar por uma renda. Esta renda lhe “permitia” pagar por casa, comida, vestuário. A proteção seria fornecida pelo Estado de Direito. Se ele não obtivesse a renda, lhe seria reservada a vida nas ruas, sobrevivendo através da mendicância.
Oficialmente e atualmente a escravidão – como já foi dito aqui – não é mais um instituto aceito. Hoje somos todos, no mundo dito civilizado, pessoas livres.
Somo pessoas livres que trabalhamos por um salário. Esse salário, no entanto, para a maioria esmagadora das pessoas é insuficiente para lhes garantir uma casa digna, comida suficiente para seu sustento e vestuário simples. Sempre lhes falta. Sempre estão devendo.
Eu pergunto: qual a diferença dessa massa infinita de pessoas para um escravo? O patrão não detém o poder de mando quase absoluto, alguém poder-me-ia responder. Mas qual a liberdade de escolha entre sair de um emprego com um patrão opressor e ficar à mercê do mercado de trabalho onde desempregados vagueiam por anos?
Realmente existe essa escolha?
Quantas pessoas você conhece, amigo leitor, que se mantém no mesmo trabalho há anos simplesmente por medo de não encontrar outro trabalho? Isso é não ter escolha.
Nós temos, hoje, o dito empreendedorismo, a livre-iniciativa, a qual inclusive está na Constituição do Brasil como um dos fundamentos de nossa República.
A partir da dela temos milhares de pessoas que se dedicam a terem pequenos e micro negócios. Segundo o Sebrae, 99% das empresas do Brasil são micro e pequenas empresas (MPE). As MPEs respondem por 52% dos empregos com carteira assinada no setor privado (16,1 milhões).
Interessante saber que a grande maioria dessas empresas pequenas não conseguem sobreviver à custas de suas próprias economias por mais de dois meses. Não existe para elas o que em contabilidade é chamada “provisão” (para prejuízos, crises, eventos desfavoráveis, devedores duvidosos, etc.). Essas empresas trabalham hoje, recebem amanhã e imediatamente pagam seus funcionários. Os “empresários” tiram suas despesas do mês – usualmente não suficientes – e “bola para frente”, sempre esperando um dia melhor, sempre esperando o momento da “virada”.
Quantas donos de pequenas empresas, amigo leitor, você conhece que vivem essa realidade do dia a dia? De “vender o almoço para pagar a janta?”
Se essas empresas param, elas quebram. Se ocorre qualquer evento diferente, elas quebram. Se elas quebram, seus funcionários…quebram.
Ora, eu pergunto: a partir do momento em que uma pessoa é obrigada a trabalhar dentro de um estreito limite, por casa, comida e vestuário, caso contrário ela “quebra”, ela não seria um escravo?
Pois entendemos o homem livre como o que? Alguém que pode circular “livremente” – porque há fronteiras – mas que não pode sequer ficar três meses sem trabalhar que vai ficar sem comida, sem teto, sem higiene, sem respeito, sem humanidade?
Sim, por que a diferença entre um trabalhador que mora em uma casa simples alugada e um morador de rua, são três meses sem salário e uma ação de despejo.
E depois de dois meses morando nas ruas, meus amigos, perde-se a humanidade e o respeito. Os que duvidam de mim, entrevistem quem vive nas ruas.
Trabalhamos – operários, pequenos empresários, funcionários públicos de baixo escalão, entre outros – por teto, comida e roupa, mensalmente.
A diferença entre nós e os antigos modelos de escravos é a doutrinação diária que recebemos desde o nosso nascimento, a doutrinação que fala que somos livres mas nos impõe condições de vida limítrofes: não há segurança pública, pois não há orçamento para tanto. Não há saúde pública, pois não há verbas para tanto. Não há lazer público, porque não há planejamento urbano. Não há esgotos e fornecimento de água potável para todos, porque a “população cresceu muito rápido” e foi “impossível coordenar o crescimento urbano”.
A doutrinação diária nos faz aceitar tudo isso com normalidade. Uma cadeia projetada para 1000 presos ser ocupada por 3000 passou a ser um fato natural para nós. Uma consulta em hospital público ser marcada para seis meses depois é outro fato natural para nós: através da doutrinação, aceitamos o inaceitável.
A semelhança entre nós, escravos modernos e os antigos escravos é que vivemos sob o domínio do medo. Antes, era o medo da violência física. Hoje, o medo de viver nas ruas, o medo da fome, o medo de não fazer parte de um sistema que nos drena, dia a dia, nossa própria vida.
Somos escravos, até que alguém me prove o contrário.

Tom Prates
Setembro de 2020 (revisado em janeiro de 2024).

Carta de touro sentado

O texto abaixo é atribuído ao Chefe Indígena Americano Tȟatȟáŋka Íyotake, o conhecido “Touro Sentado”. Quer tenha sido escrito pelo famoso chefe, ou não, o texto é atual desde antes de sua criação, pois o processo de degradação do meio ambiente do planeta terra é imemorial. Mais informações sobre o líder da resistência indígena (dadas por quem venceu a invasão, é claro) podem ser vistas na wikipedia americana, em https://en.wikipedia.org/wiki/Sitting_Bull

“O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra.

O grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Nós vamos pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas não empalidecem.

Como pode-se comprar ou vender o céu, o calor da terra?

Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exaurí-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende.

Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d’água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.

Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os filhos da terra.

Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.

De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha a um dia descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência.

Talvez compreendêssemos com que sonha o homem branco se soubéssemos quais as esperanças transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, quais visões do futuro oferecem para que possam ser formados os desejos do dia de amanhã. Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são ocultos para nós. E por serem ocultos temos que escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos na venda é para garantir as reservas que nos prometeste. Lá talvez possamos viver os nossos últimos dias como desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra de uma nuvem a pairar acima das pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. Nunca esqueça como era a terra quando dela tomou posse. E com toda a sua força, o seu poder, e todo o seu coração, conserva-a para os seus filhos, e ama-a como Deus nos ama a todos.

Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele.

Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum.”

Minha Liberdade de Pensar

Minha Liberdade de Pensar – Florent Pagny (2003)

Deixei todos os meus filhos e a TV, minha escova de dentes, meu revólver. O carro que já está pronto
Com os bloqueios do banco, leve minha esposa, o sofá. O micro-ondas, a geladeira e até minha vida privada.
Em qualquer caso, eu posso vender minha alma ao Diabo. (Com ele tudo podemos “arranjar”.)
Já que aqui tudo é negociável, mas você não terá minha liberdade de pensar.

Pegue minha cama, os discos de ouro, meu bom humor
As colheres de chá, e tudo que você achar valioso
E dos quais eu não tenho mais nada a fazer, pode levar tudo: não esqueça da merda escondida debaixo do tapete.
Tudo que é lindo e faz diferença pra mim, eu prefiro que vá para Abbé Pierre. (instituição de caridade).
Eu posso dar meu corpo para ciência, se houver alguma coisa para retirar.
E isso lhe dá uma boa ideia, mas você não terá minha liberdade de pensar.
(Minha liberdade de pensar)

Eu posso esvaziar meus bolsos na mesa.
(Eles estão há muito tempo furados)
Pode levar minhas calças, mas não terá minha liberdade de pensar.

Pegue tudo e leve para vender em seus pequenos negócios.
Eu só pego meu pijama listrado e te dou laranjas de presente.
Você pode ficar com tudo.
(Afinal) Eu não vou levar nada pro inferno.
Apesar de tudo, prefiro ir para lá se (aqui) me oferecem o paraíso.
Eu posso vender minha alma ao Diabo, com ele tudo podemos “arranjar”.
Por aqui tudo é negociável, mas você não terá minha liberdade de pensar
(Minha liberdade de pensar)

Distribuição de renda e o paradoxo das loterias no Brasil

Um dos princípios do Desenvolvimento Sustentável é a distribuição de renda de uma maneira uniforme, afinal de contas se uma existência pode desfrutar de uma qualidade de vida mínima, ela passa a ter espaço em sua consciência para se preocupar com qualidade das águas, do ar, transportes e outros fatores importantíssimos para assegurar um planeta minimamente adequado às vida das gerações futuras.
Dessa maneira, acredito que a distribuição de renda deveria um dos princípios norteadores Práticos de nossas instituições governamentais, notadamente dos Poderes Executivos (Presidentes, Governadores e Prefeitos) e Legislativo (Vereadores, Deputados Estaduais, Deputados Federais e Senadores). Aliás, o inciso III do artigo Terceiro de nossa Constituição Federal reza que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil… erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.”

A loteria como um fator concentrador de renda

No entanto, entra ano e sai ano, vejo a ferramenta das loterias sendo usada justamente ao contrário: como concentrador de renda junto aos maiores donos de capital do país.
Vejamos um exemplo atual, em uma manchete do site G1 em 17/02/2020:
“Mega-Sena, concurso 2.234: ninguém acerta e prêmio acumula em R$ 170 milhões”
Em um plano hipótetico, as chances de se acertar as seis dezenas da megasena são, apostando apenas um cartela simples é de 1 em 50.063.860, isto corresponde a 1/50.063.860 = 0,00000002 que corresponde a 0,000002%.
É muita sorte acertar, não é mesmo?
Eu, particularmente, se acertasse a Megasena de 170 milhões sozinho, iria fazer a seguinte divisão do prêmio:

Eu, particularmente, se acertasse a Megasena de 170 milhões sozinho, faria a seguinte “viagem”: iria fazer a seguinte divisão do prêmio:
-metade para doações, sobrariam 85 milhões. Depois, uns 5 milhões para familiares próximos, uns cinco milhões para amigos próximos e uns 10 milhões em imóveis no Brasil e na Europa. Restariam 65 milhões. Como eu seria muito rico, com mais 10 milhões eu decoraria fartamente os imóveis e colocaria um bom automóvel em cada garagem. Restariam ainda 55 milhões de reais.
Sou um péssimo investidor, então colocaria o restante do dinheiro na poupança, a qual me renderia cerca de 200 mil reais ao mês de juros, salvo engano.
Acredito que a maioria das pessoas faria algo semelhante: caridade, ajudar a quem se tem mais proximidade, dar-se luxo de presente e viver de renda, muita renda.
Interessante notar que, nesta situação hipotética, o dinheiro que estava nas mãos de milhões de pessoas, notadamente de classes populares, foi concentrado – ao final – junto ao governo (cerca de 51%), ao ganhador e aos grandes bancos.
Sim, aos grandes bancos, afinal a maioria das pessoas vai deixar o grande volume do dinheiro investido em uma banco, com uma rentabilidade “baixa”, porém “segura”.
E, com isso, os grande bancos, ótimos investidores profissionais, vão utilizar aquele saldo em conta (arrecadado, lembro, da população) para aumentar seus lucros sempre recordes, ou seja, as loterias são, na verdade, um grande concentrador de riquezas para os percentuais já mais ricos da população.

A loteria como fator de distribuição de renda

Diferentemente, pode-se-ia utilizar o “prêmio da megasena acumulada” como um excelente fator de distribuição de renda.
Imaginemos que a megasena passe a ser a “duesena” e que os ganhadores passem a ser aqueles que acertaram apenas dois números (ou mais, o que importaria seria o mínino de dois acertos).
A probabilidade de acertos para 6 dezenas dentro dos 60 números é de 0,000002%, conforma já fora dito. Para acertar 2 duas dezenas, no entanto, essa taxa cai para 0,06%. No concurso em exemplo, 2234, 13.800 apostas acertaram 4 números, sendo que a probabilidade de acerto de 4 números é de um em 2332, ou 0,043%, acredito que cerca de 20.000 pessoas acertaram duas dezenas no mesmo concurso.
Somente o valor destinado às seis dezenas, para o próximo concursos estimado em R$ 170 milhões, dividido por essas 20.000 pessoas, daria um valor de R$ 8.500,00 para cada pessoa. Se somados os destinados à “quadra” e à “quina”, ele valor subiria bastante.
Porém, ao recebermos R$ 8.500,00 não temos condições de comprar imóveis, fazer super doações ou algo parecido. Neste caso, usaríamos o dinheiro para arrumar o carro, trocar aquele sofá velho, comprar um novo microondas. Alguns abririam uma marcearia pequena no bairro, outros comprariam um carrinho para vender “cachorros-quentes”. Rebocar aquele muro, consertar a calçada.
Não haveria, como pode se ver, dinheiro para investir em aplicaçãos. Não haveria a possibilidade de “viver de renda”.
No entanto, 20.000 pessoas teriam recebido esse dinheiro: a economia local iria ser impulsionada, haveria geração de empregos e serviços, a economia seria catapultada para frente.
Semanalmente.
Por isso o paradoxo: se um país apresenta tanta desigualdade em sua distribuição de renda, por que não se utilizar de uma ferramenta fantástica como as loterias para alavancar tal distribuição?
Por que nenhum governo, de Direita, de Esquerda ou de Centro, jamais aventou tal possibilidade?

Fica a pergunta.

Tom Prates, junho de 2021.

Vamos falar sobre o “sistema”?

Vamos falar sobre “o sistema”?
Eu não sei quem ganha com o sistema. Não imagino quem ou o que o criou, mas consigo entender que o sistema funciona muito bem na aniquilação de valores essenciais ao ser humano e que este “sistema” colapsou as relações humanas, a criatividade e as pequenas chances de união entre os povos.
É complexo, é profundo. Profundo demais.
Nós, humanos normais e singulares, acordamos às 06:00, saímos às 7:00 e chegamos ao serviço entre 7:15hs e 9:00, dependendo da cidade e de quão caótico é o tráfego em suas regiões. Então, trabalhamos, reclamamos do governo e depois vamos almoçar. Após o almoço continuamos a trabalhar e a reclamar dos governos. 17:00 horas! às vezes 18:00, 19:00 ou 20:00, dependendo de sua responsabilidade, da cobrança de sua chefia ou de alguma urgência a ser entregue.
Aliás, tudo é urgente.
O trabalho de publicidade a ser entregue para o cliente é urgente, o projeto de engenharia para a usina é urgente, o julgamento de determinado processo é urgente, o cálculo do balanço patrimonial é urgente.
A vida se tornou um entrega sistemática de urgências, por nós, autômatos do “sistema”.
Depois que saímos, passamos pela academia para controlar o peso ou vamos a um pequeno happy hour para controlar o estresse. Vamos para casa, 21:00, talvez 22:00 ou 23:00, dormimos sós ou acompanhados, às vezes bem acompanhados, às vezes não. Então sonhamos com o final de semana que nos reserva um tempo de paz. Antes do sonho chegar na melhor parte, o despertador toca – ou acordamos naturalmente antes dele – e o ciclo recomeça.
É o sistema. É parte dele?
Dentro desse ciclo diário, usualmente não nos resta tempo para pensar na nossa vida, no nosso bairro, na política de nosso município, estado ou país.
Nem na reunião de condomínio as pessoas comparecem,
E, quando você pensa em quebrar esse ciclo, surgem importantes impedimentos: como você vai faltar ao trabalho para participar de uma manifestação pacífica a favor do aumento de leitos em hospitais sem sofrer uma advertência de seus chefes?
Se você é um agente estatal quer seja militar ou civil, como não agir de acordo com as normas vinculadas (no sentido de obrigatório, em Direito Administrativo) mesmo que elas, naquele situação real, sejam as piores possíveis.
Por exemplo, a reintegração de posse ocorrida em meados de 2019, embaixo de um viaduto da Rodovia dos Imigrantes, em São Paulo, onde tropas da polícia militar com o apoio de tratores e uma ordem judicial demandada de uma Desembargadora (ou seja, decisão monocrática de um órgão que deve julgar em colegiado, em liminar) do TJSP, destruíram dezenas de barracos erigidos por pessoas de classe média baixa que, na sua imensa maioria entrevistada pelos profissionais do “profissão repórter” nunca haviam “morado na rua”, mas chegaram a aquele extremo devido a terem ficado sem trabalho por conta da pandemia.
O que pode fazer o comandante da tropa diante disso: desobedecer porque é injusto e jogar fora uma vida inteira de combate nas ruas? O que pode fazer o gestor da concessionária que acionou o Juízo? Desistir da ação ao ver que estaria tirando a única moradia de pessoas que estavam no fundo do poço? Mas e a cessão administrativa que obriga a concessionária a manter tais áreas livres de ocupação? a empresa poderia ser penalizada e o tal gestor perder o emprego.
Dessa maneira, o sistema nos obriga a agir como autômatos sob regras cuja aplicação nem sempre é a maneira mais justa de se resolver um problema que trata de Direitos Humanos, afinal, segundo nossa própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXIII, diz que “a propriedade atenderá a sua função social”. O artigo 3º, em seu inciso III, reza que um dos objetivos fundamentais de nossa República é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.”
Se temos um terreno baldio embaixo de um viaduto ocupado por pessoas que devido a uma pandemia perderam suas fontes de renda, é justo não fazer com que tal espaço cumpra, mesmo que temporariamente, sua função social?
Mas todos os envolvidos no processo de desapropriação estavam “amarrados” em algum alicerce legal, porém, naquele momento, imoral.
E assim caminhamos: não temos tempo para discutir os problemas de nosso bairro, porque temos que trabalhar. Choramos e fazemos birra quando uma “reforma da previdência” nos retira os Direitos de nos aposentarmos ainda em vida, em vida quero dizer com idade compatível para poder aproveitar um pouco de nossa aposentadoria.
Mas por que não nos organizamos e elegemos, para a próxima legislatura, políticos que nos prometam durante a campanha que irão fazer uma “contra-reforma” da previdência? Estamos falando de leis humanas, votadas em um congresso por representante do povo e não de leis insculpidas em granito por raios advindos de uma entidade superior, por exemplo.
São apenas leis humanas que podem ser revogadas, substituídas por outras leis favoráveis a quem delas precisa: nós, o povo.
Já comentei em outro artigo a questão do porquê as loterias no Brasil são usadas para concentração de renda ao invés de serem usadas para distribuição de renda.
Porque o sistema prefere pessoas que estejam sempre precisando de dinheiro: uma pessoa com as contas em dia, um carro na garagem e dinheiro guardado para emergências, é uma pessoa que passa a ter mais tempo para pensar.
E o sistema não tolera quem pensa, pois se todos pensarmos, como poderemos aceitar que 1% da população da Terra detêm 99% das riquezas econômicas?
Como aceitar que mais da metade da população mundial passa fome? Como aceitar imagens de pessoas em cidades destruídas por guerras e que, ao tentar fugir em botes improvisados, morrem na travessia ou são presos ao final da fuga?
Quando as primeiras imagens da covid 19 chegaram ao Brasil, em novembro de 2019, da China, eu olhei aqueles socorristas vestidos como astronautas e disse para mim mesmo: isso é mais grave do que estão anunciando.
Mas, mesmo assim, veio o carnaval, depois vieram as eleições e a segunda e a terça onda de covid. Estamos em que contagem no Brasil agora, 3.000 mortos por dia?
Ontem morreu a mãe de um caro amigo, com apenas 67 anos, passou dois dias entubada.
E mesmo assim, vendo os nossos vizinhos, amigos e amigos dos amigos continuamos a agir “de acordo com o sistema”.
Não há plano, nem de Direita, nem de Esquerda a fim de unir nossas lideranças políticas, econômicas e sociais em uma luta coordenada contra a pandemia.
Há uma competição por dividendos políticos.
Precisamos, de forma organizada e legal, nos opor a um sistema que nos mantém reféns de uma estrutura circular que a cada dia nos afasta mais e mais de qualidade de vida, de segurança, de saúde-pública, de seguridade social e, do mais importante, da empatia com os outros serem humanos que nos rodeiam, os quais – raras exceções – têm as mesmas necessidades, carências, desejos que nós.
Nada acontece sem motivo: estamos em um momento de mudança, façamos nossa parte para que essa mudança seja rumo à quebra do “sistema”, pois apesar de não saber que o criou ou quem se satisfaz com a existência do mesmo, posso ao menos garantir que não fomos nós, o povo, que o criamos e que nos mantemos a partir dele.

Tom Prates, 21/03/2021.

15 anos da lei Maria da Penha

15 anos de Lei Maria da Penha: vamos pensar e agir?

Faz 15 anos que a Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340/2006, está em vigor.

Quem me chamou a atenção para tal fato foi a Mestre Regina Célia, professora em várias Faculdades de Pernambuco e co-fundadora do Instituto Maria da Penha.

Precisamos celebrar a instituição da Lei 11.340/06, é certo, pois de forma direta ou indireta a lei protegeu – e protege – mulheres em situação de perigo em virtude apenas de serem mulheres e da concepção de nossa sociedade alicerçada em conceitos pré-históricos de “homem-caçador” e “mulher-propriedade”. O pior, o mais grave, é que este perigo iminente está na maioria esmagadora das vezes dentro do próprio lar da agredida.

E agredida, entenda-se no seu mais amplo grau possível, pois a agressão emocional ou sentimental é muitas vezes tão ou mais gravosa que a agressão física: a agressão física por vezes não deixa marcas no corpo da vítima, a agressão psicológica sempre deixa marcas na mente e no espírito da vítima.

Há uma letra de música que ficou muito famosa em Portugal, da intérprete Márcia, que diz em dado momento ao seu interlocutor: “sob a pele que há em mim, tu não sabes nada“.

É fato. Ninguém – a não ser a própria ofendida – sabe a gravidade dos danos causados à sua psique, ao seu “eu-interno”, ao seu espírito. Podemos imaginar, oferecer apoio, mas a dor é unicamente sentida por quem recebeu o dano. Quiçá pudéssemos dividir entre nossos espíritos para minimizar os efeitos que recaem sobre um só espírito, mas estamos longe desse tipo de conhecimento e benção.

Infelizmente, ainda cada um carrega sozinho a própria cruz.

Precisamos – como propõe a mestre Regina Célia, fazer um balanço profundo das consequências da lei Maria da Penha: precisamos analisar dados, estratificá-los, esmiuçá-los e digeri-los. Precisamos observar os gargalhos, os filtros e as amarras que ainda permitem a agressão diária – e a muitas vezes a morte semanal – de mais e mais mulheres vitimadas por aqueles que as diziam amar. Tanto amor que se encerra na morte da pessoa iconizada – ou torturada – por uma obsessão de posse disfarçada de amor.

O que falta? Punições mais severas? Mais seriedade por parte das autoridades responsáveis? Mais responsabilidade por parte das autoridades sérias? Mais denúncias? Mais pontos de acolhimento?

Precisamos saber e, sabendo, precisamos tomar as devidas ações – políticas, administrativas, sociais – para sanear tais questões.

E precisamos ir além, caro leitor. Precisamos ir além do gênero “mulher”, principal foco das ações destrutivas, e avançar em direção aos crimes silenciosos de relacionamento, em tudo semelhantes aos praticados contra as mulheres, mas que tem por vítimas simplesmente pessoas.

Sim, pessoas, indiferente de homens ou mulheres, gays ou lésbicas, trans e cis, não importa: os crimes de relacionamento não tem a publicidade que as agressões contra o gênero feminino tem, mas são tão repugnantes quanto.

E mais, são crimes que – quando relatados – são colocados em segundo plano ou discriminados como fraqueza moral, “frescura” ou impossibilidade de sofrimento dos agredidos – moral ou fisicamente – também e simplesmente por suas características de gênero.

O padre Fábio de Melo escreveu uma obra que deveria ser de leitura obrigatória por todos aqueles que estão entrando na adolescência – qualquer seja a opção sexual – chamada “quem me roubou de mim?”

Na obra, escrita em linguagem clara, abrangente e sem nenhum pendor em tentar uma forçada evangelização como alguns poderiam, em princípio pensar, traz um retrato oriundo das observações do Clérigo sobre diversas situações de agressão moral – e na minha opinião moral e espiritual na mesma medida – da qual são vítimas pessoas, apenas “pessoas”.

Pois se pessoas são amadas, pessoas são machucadas.

E em virtude disso, pessoas são manipuladas, pessoas têm a moral e crenças subvertidas, pessoas têm a auto-estima minada e muitas vezes destruída, pessoas são vitimadas por agressores de qualquer sexo, os quais se aproveitam da proximidade amorosa encontrada para estabelecerem relações de opressão e desvalorização do outro.

Em troca de quê? Não sei. Não consigo aceitar os motivos que moveram Hitler a promover o holocausto Judeu da mesma maneira que não consigo aceitar – e sequer entender – os motivos que lema uma pessoa a oprimir outra que a ama, pelo simples ato aparente – ou prazer distorcido – de oprimir.

E, infelizmente, muitas pessoas não têm um dispositivo legal específico que as proteja.

Faz-se mister reconhecer uma maior amplitude da lei Maria da Penha através de uma melhor análise de cada caso registrado e dos resultados reais de cada investigação – se feita – sobre cada situação.

Trata-se, em última análise, do inciso IV, do artigo 3º, de nossa Constituição:

“Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Estamos em plena segunda onda da maior Pandêmia da história de nossa civilização, mas mulheres continuam a ser esfaqueadas pelos maridos na frente de seus filhos, em plena luz do dia.

Muitos partirão pela nossa grande falha em fazer escolhas erradas durante as eleições, não importando se você, caro leitor, é de direita ou de esquerda: todos falhamos, pois não elegemos líderes que nos guiassem para vale das trevas.

Mas, diante de todo esse cenário apocalíptico, muitas mulheres também partirão, vítimas de violência do lar. Muitas mulheres terão seus espíritos marcados a ferro por violências morais praticadas dentro do véu de seus relacionamentos e muitas pessoas, homens, mulheres, gays e lésbicas, cis, trans, hypes, não importa a definição, também terão a vida destruída ou marcada pela nossa incapacidade de protegê-los como sociedade.

Não podemos parar de avançar na proteção dos Direitos Humanos, pondo a culpa na Pandemia.

Pelo contrário: vamos corrigir os erros que permitiram à Pandemia nos impactar com tanta destruição e vamos comemorar os 15 anos da lei Maria da Penha como uma vitória, mas vamos também olhar esses quinze anos como base de estruturas maiores de proteção social e moral, estruturas a serem erigidas que protejam seres humanos dos desvios morais e desumanos de outros seres que se dizem humanos, sob a desculpa de “amar demais”.

Tom Prates, 15/01/2021.

Polemizando o ataque ao capitólio americano

Quem me conhece sabe que sou a favor de debates. Debates construtivos, é claro, onde as pessoas realmente ouçam as outras antes de responder.

Pois, como todos sabemos, a grande maioria das pessoas – em um debate – não ouve o que está a ser falado por outro interlocutor: elas já “ficam” pensando na resposta que irão dar, a fim de fortificar suas posições, antes de realmente ouvir e compreender o que está sendo falado.

Eu confesso que já fiz isso: demorei a aprender a ouvir, é um exercício longo, mas que vale muito à pena.

Bem, voltando ao tema de polemizar, vou conversar um pouco com você sobre a questão da invasão do Capitólio em Washington, sob um ângulo que – eu pelo menos – não vi ninguém comentar.

Durante e logo após o acontecimento, eu vi as repercussões políticas nos USA através das declarações de autoridades e população. O presidente eleito, Biden, declarou naquele momento que “a esta hora, nossa democracia está sob um ataque sem precedentes. Diferente de tudo que vimos nos tempos modernos. Um ataque à cidadela da liberdade, o próprio Capitólio. Um ataque aos representantes do povo e à polícia do Capitólio, que jurou protegê-los. E os funcionários públicos que trabalham no coração de nossa República.”

Mike Pence, vice-presidente de Trump, disse “a violência e a destruição que estão ocorrendo no Capitólio dos EUA devem parar, e devem parar agora. Todos os envolvidos devem respeitar os policiais e deixar o prédio imediatamente. Protestos pacíficos são direito de todo americano, mas este ataque ao nosso Capitólio não será tolerado e os envolvidos serão processados em toda a extensão da lei.”

E da mesma maneira inúmeras autoridades e pessoas públicas condenaram o ato, classificando-o – de maneira geral – como uma agressão à democracia do país, uma agressão à Constituição dos USA.

Trump também fez um discurso condenando a ação, após o acontecimento, mas antes estava fazendo um discurso a seus apoiadores onde disse que marcharia junto com os apoiadores ao Congresso: “eu estarei com vocês. Vamos andar até o Capitólio e felicitar nossos bravos senadores e congressistas”, rejeitando novamente o resultado da eleição.

Interessante notar que antes do discurso de Trumpo, durante as horas e dias que antecederam o acontecimento, algumas autoridades partidárias de Trump rejeitavam o continuar de protestos do presidente.

O vice-presidente Mike Pence e o senhor Mitch McConnell, (líder da maioria republicana no Senado) , rejeitaram no dia 06/01/2021 alterar o resultado das eleições presidenciais dos USA, negando-se a ceder a pressões de Trump.

No Arizona, um tradicional centro Republicano, o senador McConnell disse aos seus colegas de partido, em discurso, que “nós não podemos simplesmente nos declarar um júri eleitoral com esteroides. Os eleitores, os Tribunais e os Estados todos falaram. Todos falaram. Se passarmos por cima, vamos danificar nossa República para sempre”.

Puxa, isso foi dito por um dos principais apoiadores de Trump durante o governo de quatro anos.

O saldo da invasão foi triste, tanto do ponto de vista humano quanto do ponto de vista institucional: de acordo com o chefe da Polícia do Capitólio, mais de 50 membros da unidade foram feridos e, destes, diversos foram hospitalizados com ferimentos graves. Morreram, até a última notícia que li, um agente de segurança, uma mulher (cujo vídeo do momento em que é baleada circula pela internet) e mais três invasores que chegaram a ser levados a hospital.

Quando a ordem foi novamente restaurada e a sessão continuou, Mike Pence iniciou seu discurso dizendo “para aqueles que causaram danos ao Capitólio hoje, vocês não ganharam. (…) A violência nunca vence. A liberdade vence, e esta ainda é a casa do povo. Ao nos reunirmos novamente nesta casa, o mundo testemunhará mais uma vez a resiliência e a força de nossa democracia, mesmo depois de violência e vandalismo sem precedentes.”

Desde então várias notícias chegam dando ênfase ao perigo que Trump representa para a democracia americana e muitos políticos norte-americanos (republicanos e democratas) se mobilizam para evitar que Trump chegue sequer ao final de seu mandato, enumerando inúmeros riscos que ele, no poder, ainda pode causar à ordem constitucional.

“Bem, Tom, mas qual a polêmica que você disse que iria levantar?”, você poderia me perguntar neste ponto de nosso texto.

E eu te respondo: me chamou por demais atenção o fato de que a maioria das manifestações posteriores, tanto políticas quanto jornalísticas, tinham como assunto principal a “agressão à instituição República”, a ofensa à “Carta Política Fundamental, a Constituição”, o abuso de formas contra a Democracia.

Houve seis mortes e dezenas de feridos: todos que me conhecem sabem o valor que cada vida tem para mim, desta maneira, é claro que me coloco no lugar das famílias daqueles que pereceram, tanto do lado dos invasores quanto dos defensores e imagino a dor que devem sentir neste momento.

Mas o País, a visão macro do acontecimento, os políticos, as matérias jornalísticas deixaram em segundo plano a morte das 6 pessoas e colocaram no plano principal o atentado contra a Constituição, contra a Democracia Americana.

Pois foi um atentado contra milhões de pessoas.

A impressão que eu tive foi de que ao ter os seus maiores valores institucionais desafiados, os Norte-Americanos se unem. Eles – ao meu ver – não tiraram a importância das vítimas, mas elegeram como assunto principal a ser defendido neste momento a Unidade dos USA.

Na minha opinião, se tal fato tivesse tido lugar no Brasil – e aí a polêmica que muitos irão discordar – estar-se-ia discutindo nos noticiários “somente” sobre as seis mortes. Teríamos o perfil de cada uma das vítimas, debates intermináveis sobre a violência com que os invasores foram tratados e, em um plano bem menor, por poucas mídias e autoridades, seria debatido e comentado o ataque à democracia e à Constituição.

Não sou conhecedor profundo da cultura Norte-Americana, mas sei que o modo de colonização, colônia de povoamento, já os colocou à frente na “corrida” desenvolvimentista das nações Americanas. O Brasil por ser a clássica colônia de exploração baseada no trinômio latifúndio, monocultor e escravocrata traz inúmeros reflexos deste péssimo início até hoje.

Os Norte-Americanos, no desenvolver de sua República, tiveram que enfrentar sérios problemas, tais como a Guerra da Independência ou a Guerra da Secessão. Nós tivemos, também, vários movimentos sangrentos antes, durante e depois da independência, mas desconheço conflito armado interno maior, no Brasil, que esses dois citados, vividos pelos Norte-Americanos.

Assim, tal acontecimento no Capitólio dos USA me chamou atenção pela falta de união em torno da defesa de nossa Constituição pelos políticos, pelos meios de comunicação e por nós mesmos, o povo, quando A temos ofendida ou ameaçada.

Temos, na história recente de nosso país, vários exemplos de ofensa à Constituição por todos os Três Poderes constituídos.

As medidas provisórias, que seriam “remédios emergenciais” tomados pelo Executivo, tornaram-se uma nova maneira de legislar, quer pelos presidentes de esquerda ou de direita. As MPs são medidas excepcionais e no Brasil são usadas como Chá de Camomila, a todo momento. O Legislativo “tranca” pautas importantíssimas por anos sem nenhum respeito ao povo que representa: vejamos o imposto sobre grandes fortunas, o IGF, que tem previsão constitucional desde 1988 e até hoje não foi implementado. Vimos, há poucas semanas, os presidentes da Câmara e do Senado tentarem abrir uma “janela jurídica” para se reeleger notoriamente contra o que está positivado em nossa legislação! Tal questão a ser levado ao STF, órgão defensor da Constituição, obteve uma votação pela legalidade com a vantagem de UM voto, meu amigo leitor: UM voto!

Como assim? Não havia “margem de interpretação” na regra: é proibido dentro do mesmo mandato legislativo a reeleição e pronto. A votação deveria ter unânime, pois não havia o quer ser discutido, mas mesmo assim tivemos o que é chamado de “votação apertada” contra uma ofensa gravíssima à nossa Constituição.

Dia a dia vemos tais absurdos, dia a dia vemos nossa Constituição ser afrontada e desrespeitada e não vemos nenhuma manifestação em sua defesa, quer seja feita por nós mesmos, o povo, quer seja feita pelos agentes públicos eleitos para tanto.

Os assuntos têm o foco desviado para outras questões que não a integridade da Federação Brasileira, cada Brasileiro é jogado um contra o outro, fragmentando nossa união na base e criando feudos e grupos articulados que se mantém no poder com todas as regalias que ELES legislam a seu favor em detrimento da população.

Peço que leia o artigo quinto da nossa Constituição, amigo leitor. Peço que pense sobre a “divisão” criada de Direita e Esquerda em nosso Brasil atual ser apenas uma ferramenta de desunião do povo, pois, sendo de direita ou esquerda, todos queremos segurança, saúde e liberdade e não é o que temos, não é o que recebemos e não é o que teremos enquanto continuarmos desunidos.

Peço que olhemos criticamente a ação ocorrida no capitólio e que pensemos como reagiríamos diante de tal ofensa à nossa Carta Fundamental.

Peço que vá mais adiante e pense como devemos reagir em relação às ofensas diárias que nossa Constituição sofre, não importando se você é, meu amigo, de Direita ou de Esquerda.

Tom Prates, os 08/01/2021.

Os bichos

Nós, os bichos.
Lembra-se Manoel Bandeira?
Em 1947, ele escreveu o seguinte:

“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”

Ontem eu vi um bicho.
Ele estava caído em uma calçada de Pernambuco. Eu estava a pé.
Parecia dormir. Ou estar morto.
Para os outros bichos que passavam, não importava: eles se desviavam do caminho e evitavam olhar para a cena.
Eu passei. Diminui o passo. Olhei para trás.
Pensei: “está vivo?”
Liguei para o 192: expliquei a situação e pedi orientações.
A atendente, educadamente, anotou meus dados, os dados do local da “ocorrência” e disse que ia me passar para um médico.
O “médico” atendeu. Eu me identifiquei, como um bicho educado e adestrado que sou, e expliquei a situação.
“O que eu faço?”, disse eu.
Ele me orientou a “cutucar” o bicho. Cutuquei com o pé.
O bicho abriu os olhos, tinha uns quinze anos, talvez menos. Eu perguntei: “O que aconteceu?”
O bicho apalpou a própria barriga e disse só uma palavra: “fome”.
Eu disse ao “médico” – ao telefone – “ele está acordado agora. Tem uma aparência esquelética. Diz estar com fome”.
O “Médico” disse: “então não podemos fazer nada, só atendemos urgências médicas. O senhor precisa ligar para a assistência social.”
Eu perguntei se o “médico” sabia o telefone da assistência social: ele disse que não.
Pensei, então, no tal juramento de Hipócrates, onde tem uma parte que os formandos em medicina juram “aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém.”
Fome extrema não é uma doença?
“Não posso fazer nada.”
Eu olhei para o bicho e disse: “fique aqui, eu volto.”
Ele sorriu: os dentes da frente quebrados.
Comprei uma coca-cola, um cachorro quente e um pedaço de bolo.
Voltei.
Pedi calma ao bicho: eu disse que ele estava muito fraco, que tomasse primeiro – e devagar a coca-cola – para recuperar a energia. Ele obedeceu.
Então eu dei o cachorro quente e disse: coma devagar, pois você pode passar mal. Ele aquiesceu.
Depois que ele comeu o cachorro quente, perguntei-lhe o nome: “Erick”.
-Você tem casa Erick? – perguntei.
Ele disse que morava com a avó em algum bairro que eu, juro, não entendi o nome.
Ajoelhado ao seu lado, pedi que ele olhasse nos meus olhos. E obedeceu.
-Vá para casa. Vá para junto de sua avó. Não fique mais aqui, não quero te ver de novo caído na rua. Você vai para casa? Você me promete? – disse eu.
O bicho prometeu que sim.
Dei a ele 8 reais e pedi novamente: vá para casa, por favor.
Ele sorriu, sem os dentes da frente e disse que sim.
Levantei-me e segui em frente.

Confesso que chorei, como sempre, por não poder fazer mais neste momento da minha vida.
E rezei para que ele voltasse para casa.
Se ele fosse um bicho com pedigree, como um raro poodle ou um lindo Yorkshire Terrier, tenho certeza que eu não o teria encontrado caído e dormindo no chão, pois alguém já o teria pegado no colo e levado para casa dizendo “tadinho, quem tem coragem de fazer isso com um bichinho tão fofo?”
Mas ele não era um bicho com pedigree: ele era apenas um bicho, “um bicho, meu Deus, que era um homem.”, como disse Bandeira há mais de cinquenta anos.
E que tipo de bicho nós somos ou nos tornamos, quando a visão de um de nós caído nos gera repulsa e fuga.
Quando foi que abandonamos a nós mesmos? Por que nós fizemos isso?
Quando foi que a maioria de nós se tornou um bicho tão insensível que não consegue se enxergar no outro, naquele que respira, ama e sofre como qualquer um de nós?
Alguém já me disse que eu “queria salvar o mundo”.
Será que SER humano é tentar salvar o mundo?
E quando você encontrar outros “Ericks” por aí, tente se lembrar que, no mínimo, ele é um bicho-humano.
E, talvez mais importante ainda, tente se lembrar de que você também é um bicho-humano.
Que sangra, que sofre, que tem fome.
(Que talvez sonhe, que talvez ame, que talvez tenha esperança.)
E tome a decisão que achar melhor.

Tom Prates, 10/12/2020.

E se?

E se?
Estamos em 18 de março de 2020, Brasil, em pleno início da crise com a Pandemia da doença Covid 19.
Vivemos uma era de extremos: direita reacionária X esquerda radical; riqueza abundante X pobreza miserável; ”aquecimento global é o fim” X “aquecimento global é bobagem”… e outros tantos extremos. Diante desses cenários, penso: “e se não fosse assim”? “E se fosse de outro jeito”?
Porque se tivéssemos, no Brasil, investido em políticas de ocupação racional do interior, com implementação de cinturões verdes e pólos industriais, teríamos cidades com mais espaço entre as pessoas, rendas mais altas, maiores arrecadações e melhor oferta de serviços públicos. Nestes serviços públicos poderíamos ter um sistema de saúde de maior qualidade, preparado para atender as demandas naturais e com planos de enfrentamento para as crises que, como a história nos conta, sempre aconteceram e sempre acontecerão.
E se tivéssemos investido em educação básica? Teríamos uma base cultural mais sólida, que daria ao povo um melhor poder de escolha para fugir das armadilhas do voto de protesto, do voto populista, do voto nulo, do voto irresponsável.
E se tivéssemos investido em segurança pública eficiente? Teríamos hoje fugas em massa em cadeias de São Paulo? Mais, veríamos as cenas medievais oriundas dos diversos presídios espalhados pelo Brasil? Continuaríamos a ouvir notícias de cadeias projetadas para 1.000 presos abrigarem 3.000?
Muitos de nós, a grande maioria acho eu, sobreviverão ao Covid 19.
E se tudo isso servir para que pensemos no que temos feito até agora pelo nosso país, pelo mundo e pelo futuro? Talvez possamos começar a mudar algumas coisas.

Tom Prates, 18/03/2020